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Psicanalista; Especialização em Teoria Psicanalítica; Atualização em Psicopatologia e Psicofarmacologia (Hospital das Clínicas / FMUSP); Atualização em Puberdade e Adolescência (E.Psi.B.A. - Argentina); Atualização em Educação e Psicanálise (Universidade de São Paulo); Atualização em Psicopatologia, Psicanálise e Terapêutica da Criança (NEPE - Escola de Psicanálise). E-mail: hrivello@gmail.com Fones: (35) 3234-1532 / 9939-2045

sexta-feira, 8 de abril de 2011

A constituição histórica da loucura, por Daniel Pereira Andrade

Há dimensões da existência humana que são repetidamente apresentadas como naturais, como existindo sem alterações desde sempre, mas que possuem sua história secreta. A loucura é certamente uma delas. Sua história é contada por Michel Foucault em um livro (História da loucura na idade clássica) e em pelo menos dois cursos já publicados (O poder psiquiátrico e Os anormais), onde relata os acontecimentos subterrâneos pelos quais a loucura foi convertida em doença mental.

No contexto das décadas de 1960 e 1970, quando diversos movimentos sociais reivindicavam o direito de afirmar a verdade sobre a sua própria identidade, a relação entre a psiquiatria e a loucura foi pensada por Foucault e outros intelectuais como central nas lutas de seu tempo. O louco reduzido a doente mental era o caso paradigmático de perda de autonomia do sujeito a partir de uma identidade que lhe era imposta por outros. Na relação psiquiatra-paciente, o médico era superinvestido de poder, podendo, a partir da autoridade de seu saber científico, diagnosticar a doença mental do paciente. Este, por sua vez, após ser diagnosticado como doente mental, perdia toda a autonomia sobre si mesmo, não podendo nem mais afirmar a verdade sobre si nem determinar os rumos da sua vida, que passavam inteiramente para as mãos do especialista que deveria tratá-lo.

O estigma da doença mental rompia todo diálogo entre o louco e as pessoas de razão, restando apenas o monólogo da razão científica positivista sobre esse ser humano silenciado. Contar a história da formação desse poder, esquecida sob a naturalização do discurso médico-psiquiátrico, era revelar a batalha por meio da qual determinados modos de ser foram descartados como não-humanos, perdendo seu direito de existir livremente. Além disso, como o louco-doente mental era o caso paradigmático de imposição da identidade, mostrar os pressupostos e efeitos de poder do saber científico permitia desconstruí-lo e assim abrir espaço para que outros movimentos sociais reivindicassem a verdade sobre si mesmos, estabelecendo o significado de suas diferenças e fazendo experiências com outras formas de ser (movimento feminista, negro, de orientações sexuais diversas, étnicos, entre outros).

Em História da loucura na idade clássica, Foucault iniciou sua luta contra as verdades antropológicas assujeitadoras apresentadas como naturais e universais. Não se trata, nesse livro inaugural, de retraçar os avanços da psiquiatria em relação a um objeto imutável que se revelaria aos poucos com a sofisticação dos métodos científicos. Tampouco de contar como o surgimento da psiquiatria no século XVIII representou uma guinada para um tratamento mais humano e racional, com a clássica imagem de Pinel libertando os loucos das correntes em Bicêtre. Trata-se, pelo contrário, de mostrar historicamente como se deu a separação entre a loucura e a razão, o rompimento do diálogo e da troca entre ambas, relegando a loucura ao silêncio. Nesse processo, a própria razão se constituiu por oposição à loucura. Somente com a realização histórica a priori dessa separação e subjugação que se tornou possível a elaboração de um saber científico sobre a loucura, forma de conhecimento positivista que é uma racionalidade abstrata imposta ao louco como ordem, constrição física e moral, pressão anônima do grupo e exigência de conformidade.
A história da loucura feita por Foucault é uma história contada do ponto de vista dos sujeitados, não de sua experiência vivida direta, mas de uma perspectiva que permite compreender pelo avesso como se constituíram os poderes que na sociedade determinaram o que é racional, relegando a alteridade à condição de doença e de não-humanidade. Nessa condição estigmatizada, as falas balbuciantes são reduzidas a sintomas que o especialista deve interpretar. Em última instância, quem falaria pela boca do louco seria sempre a doença mental, cuja verdade é simultaneamente produzida e revelada pelo psiquiatra. É, portanto, a história da sujeição e do silenciamento da loucura que Foucault relata.

Foucault retorna ao fim da Idade Média para mostrar como essa separação que hoje tomamos como evidente não existia. Ao mostrar a alteridade do passado, Foucault já desnaturaliza o presente, mostrando que o que somos hoje possui uma história feita das contingências das lutas e relações humanas, sendo, portanto, passível de mudança. Nesse momento, a loucura ainda circulava livremente, fazia parte da vida cotidiana, não havendo internamento. Sua imagem característica era a da nau dos loucos, navios em que estes eram embarcados e levados de uma cidade a outra. A loucura possuía valores e significados herdados do que havia sido a lepra antes de seu desaparecimento após o fim das Cruzadas: representava ao mesmo tempo a cólera e a bondade de Deus, pois sua exclusão social remetia à salvação de sua alma. A nau compreendia assim um sentido ritual, onde a segregação imiscuía-se à reintegração espiritual. O embarque dos loucos assegurava sua partida para longe, fazendo com que se tornassem prisioneiros de sua própria partida, realizando simultaneamente uma purificação e uma passagem para a incerteza da sorte. A água e a navegação remetiam a uma consideração simbólica da loucura: encerrado na nau, o louco estava entregue ao livre curso das correntes e das marés, tornando-se prisioneiro da mais livre das rotas, um prisioneiro da passagem. O louco era assim um errante, figura ambígua que ameaçava e surpreendia o mundo, povoando a imaginação europeia.

A representação da loucura, que impregnava a paisagem cultural do século XV, celebrava-a muito mais do que a procurava dominar. De início, ela pressagiava o macabro, pois era a loucura do homem, denunciando por toda parte o espetáculo ridículo e vazio da vida cotidiana, que invocava o fim do mundo e o tornava necessário. A loucura possuía prestígio, encerrando enigmas que exerciam poder de atração sobre os homens. A partir do Renascimento, a pintura, que havia se desligado da função de ensinar a tradição religiosa, passou a dedicar-se ao fascínio dos homens, remetendo permanentemente à figuração da loucura. A loucura, revelando a face monstruosa existente no interior dos homens, o que havia neles de inumano, passava a constituir um saber exotérico, proibido, inacessível às pessoas de razão, detido apenas pela inocência dos loucos. Saber que revelava o reino das trevas e o fim do mundo, seu poder sobre a terra e o castigo supremo. Anunciando por meio de fantasias as ameaças, os segredos e o destino, a loucura instaurava-se como uma experiência trágica.

Opondo-se a essa representação pictórica trágica, a literatura e a filosofia deram à loucura um tratamento de sátira moral, esvaziando-a de seus enigmas e oferecendo ao homem uma verdade relativa às suas fraquezas. A loucura marcava as ilusões e os erros nascidos do excessivo apego por si mesmo. A crítica dos sábios permitia que eles considerassem com distanciamento a loucura e a colocassem em discurso. Com essa consciência crítica e discursiva iniciava-se a percepção clássica da loucura. Mas a loucura ainda estava por toda parte, em todo homem, sem possuir uma figura clara e destacada, ainda que cada vez mais se submetesse à apreciação de uma razão dominadora. A perda progressiva da conotação mítico-religiosa da experiência trágica privou a loucura da relação com a verdade. A partir da apreciação filosófica de Descartes, ela foi associada ao conceito moral de desrazão, ou seja, outra forma de razão que não se decidiu pela busca metódica do verdadeiro, abandonando-se aos encantamentos e às contradições, deixando de ser senhora de si e perdendo sua autonomia. A loucura como desrazão remetia a um erro ético, a uma escolha perversa, em que não se havia decidido pela retidão da ordem e da moralidade. A desrazão compreendia uma dimensão mais ampla de imoralidade, da qual a loucura era apenas uma parte menor, mas repreensível da mesma maneira.

No século XVII, com a fundação do Hospital Geral de Paris, que atendia a fins punitivos de internamento e não a objetivos médicos, promoveu-se o enclausuramento das figuras da desrazão, personagens igualmente imorais, mas distintos entre si (pobres, ociosos, devassos, alquimistas, suicidas, blasfemadores, portadores de doenças venéreas, libertinos de todas as espécies e, claro, os loucos). A punição da loucura encerrava, portanto, uma percepção moral, remetendo a uma ética multifacetada do trabalho, religiosa e sexual. O grande internamento representava uma vitória do bem contra o mal, um triunfo da razão sobre a desrazão. No Hospital Geral, a exibição pública da figura animalizada do louco enjaulado permitia à razão vitoriosa observar a degradação daquilo de que ela se apartava, reforçando sua consciência de ser diferente dessa não-humanidade e exaltando sua própria moralidade. A extensão do internamento ao louco marcaria para sempre uma percepção ética e dualista da patologia mental: é-se ou não doente mental.

No século seguinte, o medo que se constituiu de um mal-podridão derivado da reunião promíscua no enclausuramento e a suspeita de que esse mal misterioso pudesse se espalhar pelas cidades pelo ar dessa atmosfera viciada acabaram por vincular a desrazão à doença a partir de seu conteúdo moral. O médico foi então designado para observar o internamento, não para curar os internos, mas para proteger os outros do perigo que saía desses grandes estabelecimentos de punição. O médico tornava-se assim cúmplice da moral e sua relação com o louco começou a partir da reclusão e da condenação ética. Ainda no século XVIII, os demais internos, em número aumentado devido aos presos políticos da Revolução Francesa, se revoltaram por serem internados com os loucos, pois não aceitavam ser confundidos com estes que representam a humilhação e o risco de alienação. Por outro lado, o internamento dos pobres passou a ser visto como um erro econômico por suprimir o trabalho e imobilizar a renda de uma parte da população, aumentando o empobrecimento geral. A correção desse erro econômico levou à recolocação da população internada no circuito da produção, reintroduzindo cada indivíduo no seio de sua família para ser curado-moralizado. Contudo, os loucos foram considerados incuráveis e perigosos para a sociedade e permaneceram internados sob a vigilância médica. Aos médicos coube diferenciar os internos curáveis-moralizáveis dos incuráveis-loucos e proteger os cidadãos de razão desses reclusos ameaçadores.

Ao isolar-se o louco no confinamento e deixá-lo aos cuidados médicos, criou-se a condição de possibilidade para que a loucura emergisse como objeto de conhecimento da ciência médica positivista. A observação ao mesmo tempo moral e científica do médico sobre o louco converteu a loucura em uma doença mental, em um objeto tão natural quanto as demais doenças do corpo, embora não se tratasse do corpo, mas da mente. A relação do louco com o mundo passou a se dar por meio dessa razão científica abstrata, que o coagia e o obrigava a se enquadrar na ordem. Por outro lado, o homem comum, o cidadão racional, encarregava o especialista médico de lidar com a loucura. A troca existente na Idade Média entre loucura e razão se desfez, restando apenas o monólogo da razão positivista sobre loucura.

No curso O poder psiquiátrico, Foucault retoma a discussão da loucura a partir de uma mudança importante que ocorreu na sua caracterização pela psiquiatria: a mudança do eixo verdade-erro-consciência, caro aos alienistas do século XVIII, para o eixo paixão-vontade-liberdade, característico da psiquiatria do século XIX. Trata-se de uma mudança de suma importância, na medida em que o louco deixou de ser o alienado, mergulhado nos seus erros, delírios e ilusões, para se converter no anormal, ou seja, aquele que desvia da norma. Foucault parte da tentativa da psiquiatria de se aproximar da medicina, ao buscar localizar as doenças mentais em um corpo anatomopatológico e fazer corresponder os comportamentos desviantes às lesões neurológicas. O fracasso dessa psiquiatria física em localizar os correspondentes anatômicos das doenças mentais fez com que ela, mesmo continuando a considerar a loucura um objeto natural, deixasse de localizá-la nos órgãos e tecidos do corpo e passasse a descrevê-la a partir de condutas, ações e reações a partir de uma nova bateria de estímulos-resposta.

Um dos procedimentos caros a essa psiquiatria para produzir a verdade sobre a loucura-doença mental foi o interrogatório. Por meio dele, procurava-se encontrar na história antecedente do paciente ou na de seus antepassados os indícios de sua loucura antes que ela fosse desencadeada. O objetivo era mostrar que ela sempre esteve lá, criando uma identidade entre a doença e o sujeito, mesmo sem designá-la corporalmente. Com isso, todos os pequenos desvios das normas disciplinares e/ou biorregulamentadoras foram vistos como indícios da doença, de tal modo que a transgressão era convertida em característica psicológica do sujeito. A anomalia se convertia assim na condição de possibilidade da loucura.

A partir desse procedimento, o asilo psiquiátrico permitia que a loucura fosse diagnosticada e classificada, mas também que ela fosse vencida e submetida. O que estava em jogo nesse espaço era a produção e terapeutização da doença mental a partir de um conjunto bem delimitado de estratégias de poder: isolamento, interrogatório público ou privado, tratamentos punitivos como a ducha, as obrigações morais, a disciplina rigorosa, o trabalho obrigatório, as recompensas, as relações de preferências entre certos médicos e certos doentes, as relações de posse, de subordinação, de vassalagem, de domesticação, de servidão do doente ao médico. Tudo isso tinha por função fazer do personagem do médico o mestre da loucura: aquele que a fazia aparecer em sua verdade, que explicitava o que estava escondido e silencioso, mas também aquele que a dominava, a apaziguava e a absorvia depois de havê-la sabiamente desencadeado. Esse processo de cura não se dirigia ao corpo, mas à moral, às paixões e à vontade. Não se tratava de dissipar enganos de compreensão, percepções enganosas e julgamentos falsos; tratava-se de confrontar a vontade perturbada, as condutas indesejadas e as paixões pervertidas com a retidão das qualidades morais representadas pelo médico, de modo a normalizar e tornar o louco dócil. Com isso, o asilo reunia as exigências de cura pelo internamento, mas também de proteção da sociedade contra a ameaça de desordem.

Em Os anormais, Foucault explora o modo como a psiquiatria e a justiça criminal cruzaram seus caminhos. Identificando o criminoso com o seu próprio crime por meio do interrogatório e do inventário das anormalidades pregressas, a psiquiatria forense estabelecia uma conexão entre loucura e criminalidade: onde há crime, há loucura; onde há loucura, há o perigo do crime. O papel da psiquiatria, assim, era o de defender a sociedade, prometendo uma ciência que poderia antecipar o crime, prevenindo-o antes que ele fosse cometido. Para cumprir esse objetivo, a psiquiatria relacionou as características físicas exteriores (como as medidas do crânio, por exemplo) com os comportamentos anormais e criminosos, introduzindo a loucura e a delinquência no âmbito das raças biológicas e da causalidade hereditária, dando origem assim às políticas eugênicas do final do século XIX e início do XX.

Para concluir, vale observar que, após os movimentos de maio de 1968, a própria psiquiatria se transformou, deslocando-se parcialmente da questão da anormalidade e da referência à norma disciplinar. Duas mudanças foram fundamentais nesse aspecto. Primeiro, a biologia molecular e as novas tecnologias que fazem imagens do cérebro em funcionamento permitiram uma nova tentativa de aproximação da psiquiatria com a medicina, dando um corpo biológico-imagético a esse saber e identificando as doenças mentais com as doenças neurológicas. Ainda que nem sempre essa identificação seja realizada com sucesso, ela é sempre colocada como hipótese a ser futuramente comprovada. Segundo, a psiquiatria passou por uma política de redução ou eliminação dos asilos e internamentos, adotando novas estratégias que se voltam para o controle de toda a sociedade. Ela procura agora prevenir e gerir os fatores de risco e incrementar a saúde mental das populações, intervindo sobre os próprios normais. Isso em larga medida deslocou as preocupações com a norma, movendo a psiquiatria na direção da melhoria dos recursos psíquicos, o que a faz convergir com a nova estratégia econômico-político-social de valorização do capital humano. Por outro lado, os próprios indivíduos recorrem ao saber psiquiátrico divulgado na grande mídia ou em sites na internet, tornando-se seus próprios especialistas e realizando um cuidado biológico de si (não apenas por meios fármacos, mas também por meio de exercícios, alimentação, hábitos saudáveis etc.). No âmbito desse cuidado biológico de si, torna-se cada vez mais indiscernível o que é tratamento de uma doença auto-diagnosticada e o que é promoção da melhoria das competências psíquicas através do uso “cosmético” dos mesmos meios médicos. Essas mudanças criam uma zona de indefinição na fronteira entre o normal e o patológico, levando a uma concepção inflacionada do “saudável” que possibilita a multiplicação de diagnósticos (atendendo por vezes a interesses econômicos). Inicia-se aí uma nova fase da história da loucura, correspondente a uma mutação das formas de controle das sociedades contemporâneas.

Daniel Pereira Andrade é professor de sociologia da Fundação Getúlio Vargas, doutorando da FFLCH/USP, autor do livro Nietzsche – a experiência de si como transgressão (loucura e normalidade) – Editora Annablume. Pesquisa atualmente as relações entre poder e emoções nas sociedades contemporâneas.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Entrevista sobre Jacques Lacan - Elisabeth Roudinesco

            Para falar de Jacques Lacan, Elisabeth Roudinesco é mais do que credenciada: ela é autora da biografia do psicanalista Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (Companhia das Letras); escreveu a História da Psicanálise na França (Jorge Zahar Editor), e é co-autora, com Michel Plon, do Dicionário de Psicanálise (também da Zahar). Historiadora e psicanalista, Roudinesco é, também, vice-presidente da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise, cujo presidente é o psicanalista René Major. ''Lacan foi o último dos grandes intérpretes de Freud e o único de sua geração a repensar todo o sistema freudiano'', ressalta, frisando que, no entanto, o lacanismo não passa de uma das correntes do freudismo.
     Dizendo-se totalmente hostil às sessões de curta duração, inventadas por Lacan e levadas ao exagero por seus discípulos, ela explica por que Lacan questionou e transgrediu o tempo de 50 minutos estabelecido pela IPA (Associação Internacional de Psicanálise), diz que sessões supercurtas são pura escroqueria, defende a sessão de duração mínima entre 20 e 40 minutos e acrescenta, enfática: ''É preciso exigir isso''. Segundo Roudinesco, Lacan deu uma dimensão filosófica à obra de Freud, acrescentou uma teoria filosófica do sujeito e uma nova maneira de formar analistas e, por isso, fundou uma escola tornando-se, através de seus disputadíssimos seminários, um verdadeiro maître à penser. ''Lacan transgrediu todas as regras, inclusive reduzindo a duração das sessões ao estado-zero, mostrando com isso que o culto que envolvia sua pessoa o levava ao ponto extremo de sua ausência absoluta'', ressalta a biógrafa. De Paris, onde mora, Elisabeth Roudinesco, concedeu essa entrevista por telefone ao Idéias.

     L.D. - A senhora é a autora de uma biografia de Jacques Lacan. Qual a importância de Lacan para a psicanálise?
     E.R. - Enorme. Lacan é o último dos grandes intérpretes de Freud e o único herdeiro de Freud de sua geração a ter repensado todo o sistema freudiano. Ele filtrou a conceitualidade biológica de Freud através de um novo sistema que considera o inconsciente como uma linguagem. De certa forma, repensou tudo, inclusive o sistema de formação dos analistas. Lacan tem, por tudo isso, uma importância considerável.
     L.D. - Lacan é, na sua opinião, o mais importante pensador da psicanálise depois de Freud?
     E.R. - Houve outros muito importantes como Melanie Klein, por exemplo, que também refundou o sistema freudiano. Desde Freud, os pensadores importantes da psicanálise são os que fizeram escola. Melanie Klein, por exemplo, que é freudiana, repensou toda uma parte do sistema de Freud. Mas Lacan foi mais longe porque ultrapassou o campo da clínica. Melanie Klein trouxe a questão das relações arcaicas com a mãe, inventou a psicanálise de crianças, mas Lacan foi mais longe. Ele inventou um novo conceito no que diz respeito a Freud e deu uma dimensão filosófica à sua obra, acrescentou uma teoria filosófica do sujeito e uma nova maneira de formar analistas. Houve outras figuras muito importantes depois de Freud, é claro, mas acredito que Lacan é um verdadeiro refundador.
     L.D. - Por que Lacan não publicou seus casos, com exceção de sua tese?
     E.R. - Por que era uma época muito diferente. A tradição de publicação dos casos é uma tradição inglesa, num país onde a psicanálise era limitada a clínicos e onde os casos eram lidos por poucas pessoas, não tinham uma audiência popular. Os Estados Unidos também publicaram casos porque a psicanálise tinha ficado muito clínica. Tendo se tornado um maître à penser que fazia um seminário, que era seguido por tanta gente, era difícil para Lacan publicar casos porque isso tomaria uma dimensão que possibilitaria as pessoas a se reconhecerem facilmente. Penso também que a característica de Lacan não era publicar casos clínicos mas, antes, voltar sobre o comentário dos grandes casos de Freud. Ou de comentar o caso dos outros. Nesse sentido, há provavelmente uma lacuna em Lacan. Mas a forma como ele praticava a psicanálise não era muito fácil, porque Lacan teve um grande número de psicanalistas em análise, numa época em que a análise tornava-se muito popular e as pessoas poderiam se reconhecer. Era mais fácil publicar casos psiquiátricos que casos de neurose, porque haveria risco de haver pessoas conhecidas do meio.
     L.D. - Na França, a psicanálise está representada por cerca de 20 grupos. Isto é um sinal de vitalidade ou seria antes lamentável?
     E.R. - Lamentável é uma palavra muito forte. Acho que é antes um sinal dos tempos, muito característico de nossa época, em que abandonou-se um pouco a soberania das grandes instituições imperiais e gigantescas, de certa forma, por grupos mais identitários. Portanto, as sociedades psicanalíticas de hoje não ultrapassam os 300 membros e têm uma tendência a se tornar uma espécie de reagrupamento federativo em vez de haver uma só instância. Há preferência por pequenos grupos ou grandes escolas mas que representam uma diversidade. Estamos numa época muito associativa, não há pois porque temer muitas associações, não há mais a impressão de perda de uma identidade ou de uma legitimidade. Estamos em um período de dessoberanização da psicanálise. Não é, pois, nem um sinal de vitalidade nem de degradação, é o sinal do tempo presente, que corresponde à política tal qual é vivida hoje. Por exemplo, vocês têm isso no Brasil. Há dezenas de grupos por cidade. Não há uma só psicanálise no Brasil, já que há cidades muito diferentes e nas cidades há muitos grupos. Na França, é parecido mas em dimensão menor porque a França é cinco vezes menor, mas a tendência é a mesma. Mas os grupos se freqüentam, há uma espécie de convivialidade.
     L.D. - Os psicanalistas pertencem a diferentes correntes e pequenas igrejas, em geral. O que faz a diferença entre um freudiano e um lacaniano?
     E.R. - Os lacanianos são freudianos. Hoje há lacanianos em todos os países do mundo. Assim como os kleinianos, os lacanianos também são freudianos. A característica é que todos se reconhecem na psicanálise enquanto que o que se afasta de Freud não é mais psicanálise. Os que praticam a psicanálise têm em comum conceitos como o inconsciente, a transferência, um certo tipo de tratamento. Se não se trata mais de psicanálise, então trata-se de psicologia, psicoterapia. Os lacanianos são, pois, uma das correntes do freudismo.
     L.D. - E qual é a diferença entre um psicanalista que se diz lacaniano de um que se diz freudiano?
     E.R. - A grande diferença, eu diria, é que os lacanianos reivindicam uma conceitualidade, uma releitura de Freud por Lacan. Eles levam em conta a teoria do significante, a teoria do inconsciente da linguagem etc. Hoje, não existem muitos freudianos clássicos à moda vienense. Os freudianos são hoje muito mais centrados sobre as relações de objeto, sobre Winnicott, sobre os problemas de relação com a mãe. Eu diria que a separação se faz hoje na prática analítica e sobretudo sobre os conceitos que se pretendem extraídos da teoria de Lacan.
     L.D. - Qual a diferença na prática analítica entre freudianos tout court e freudianos lacanianos?
     E.R. - Os lacanianos trabalham com uma duração variável dos tratamentos, com a duração variável das sessões de análise, têm uma concepção de intervenção mais forte sobre a linguagem, enquanto os freudianos clássicos têm mais sobre o comportamento e os kleinianos mais sobre a questão da transferência.
     L.D. - A senhora escreveu: ''Não podendo nem analisar todo mundo, nem renunciar a analisar todo mundo, Lacan fez mais do que encurtar a duração das sessões: reduziu esta duração ao estado-zero, mostrando, com isso, que o culto que envolvia sua pessoa o levava ao ponto extremo de sua ausência absoluta. Escroqueria ou magnífica passagem ao ato?'' O que a senhora pensa da duração curta das sessões dos lacanianos?
     E.R. - Sou totalmente hostil a isso. Lacan transgrediu todas as regras, mas era Lacan como mestre fundador. Acho que ele levou essa tentação longe demais e não se deve imitar isso. Lacan praticava a sessão de duração variável, o que era válido, isto é, não manter sempre o mesmo tempo fixo para as pessoas. Mas defendo a existência de um contexto fixo. Penso que é preciso marcar com os pacientes no mínimo meia hora, mesmo se no decorrer da sessão se possa interromper antes ou ultrapassar um pouco. Mas é preciso que haja um contexto fixo e que cada paciente seja recebido sozinho a cada meia hora, no mínimo, e não em uma sala de espera para dez, sem horário, como se faz às vezes.
     L.D. - Isso se faz com freqüência?
     E.R. - No Rio, há alguns psicanalistas lacanianos, ou talvez muitos, que praticam essas sessões nesses moldes, mas não em todo o Brasil. Na França, essa prática é marginal. E sou absolutamente contra essa prática e, de uma maneira geral, sou contra qualquer imitação pelos epígonos dos excessos de Lacan. Mas o eletrochoque que Lacan deu no tratamento burocrático e cronometrado que era o da IPA nos anos 50 foi muito benéfico. Isso fez com que se mudasse o sistema fixo das sessões de 50 minutos. Você pode imaginar quando alguém está muito angustiado e não consegue falar, o analista mantê-lo 50 minutos em silêncio? É preciso saber jogar com o tempo.
     L.D. - E como os lacanianos usam o tempo de sessão hoje? Eles fazem sessões de 45 minutos?
     E.R. - Hoje, a quase totalidade dos lacanianos voltou a uma prática razoável, isto é, a sessões variáveis, mas com um contexto fixo. O analista lacaniano marca sessões para cada meia hora, no mínimo, ou mesmo cada 40 minutos e, no interior desse esquema, há um certo jogo de tempo. Mas, em princípio, os lacanianos fazem sessões que duram entre 20 e 40 minutos. Sessões mais curtas são raríssimas e eu considero que, hoje, elas representam uma escroqueria.
     L.D. - O tempo máximo é de 40 minutos?
     E.R. - É a prática habitual, mas pode-se imaginar toda espécie de possibilidades. Pode-se imaginar, e é isso a riqueza da psicanálise hoje, pessoas que vão uma vez por semana e podem ficar uma hora. Digamos que entre meia hora e 45 minutos é um tempo médio, mas meia hora seria o mínimo. É preciso exigir isso.
     L.D. - Após a morte de Lacan, as diferentes tendências lacanianas se lançam a batalhas furiosas que continuam hoje. Por que os lacanianos brigam tanto?
     E.R. - De cinco anos para cá existe um declínio dessas disputas, com exceção da École de la Cause de Jacques-Alain Miller, genro de Lacan, na qual houve duas cisões. As pessoas estão deixando a École de la Cause porque é um grupo muito dogmático. De uma maneira geral, há múltiplos grupos lacanianos que são menos conflituosos que antes. Acho que há mais estabilidade hoje no campo psicanalítico, à parte a associação de Miller.
    L.D.  - Qual a importância dos Estados Gerais da Psicanálise, que se reuniram no ano passado em Paris, para o futuro da prática e da teoria psicanalítica?
     E.R. - Tenho a impressão de que pelo fato de ter reunido 34 países no grande anfiteatro da Sorbonne teve uma grande importância. A característica dos Estados Gerais foi um novo modo de funcionamento, uma vez que todos os convocados tiveram direito à palavra, foram realmente os Estados Gerais da Psicanálise. E também foi provavelmente a primeira vez que se reuniu, sem nenhuma exclusão, o que havia de mais amplo como orientação psicanalítica. Havia freudianos, lacanianos, membros da IPA e psicanalistas de vários países que não eram nem lacanianos nem da IPA. Havia ainda americanos de tendências diversas. O que houve foi, o que é característico de René Major, o inspirador, o cotejamento do que há de mais amplo no interior da psicanálise. Acho que nesse sentido houve um impacto. Havia mais brasileiros que argentinos. Acho que hoje o Brasil é o país da América Latina que mais avançou na psicanálise.
     L.D. - Em que sentido?
     E.R. - É um país muito grande e acho que, com o fim da ditadura, a psicanálise se desenvolveu com mais vigor. E é o único país em que a psicanálise triunfa no ensino universitário. A psicanálise não é ensinada apenas em sociedades psicanalíticas privadas, mas também em todas as universidades. E ela está em declínio no ensino universitário na Europa e não tem o mesmo impacto na universidade na Argentina. No Brasil, a psicanálise é ensinada nos departamentos de psicologia, nos quais se formam os psicólogos. Nos Estados Unidos, não há esse ensinamento maciço na universidade.
     L.D. - Qual é o futuro da psicanálise?
     E.R. - A grande questão da psicanálise é a confrontação com as centenas de escolas de psicoterapia. Ela afirmou uma identidade em face do florescimento considerável dos outros tratamentos psíquicos e vai ter uma concorrência muito grande das psicoterapias. A psicanálise não está em perigo, mas a mudança é muito importante. E cada vez mais as psicoterapias incorporam a psicanálise, porque é o melhor tratamento. Mas há também interrogações mais pragmáticas do que antes e isso não é necessariamente bom. Cada vez mais vai-se procurar a análise para curar sintomas e menos pelo desejo de se conhecer.

Freud - Biografia & Pensamentos (Áudio)



Papo de divã com leveza de botequim:
Uma conversa com o psicanalista Luís Carlos Menezes sobre a vida e o legado de Sigmund Freud, o homem que revolucionou as ideias sobre sexo, sonhos e desejos.
Construa seu próprio Retrato:
Entre em contato com os princípios desta ciência que busca desvendar o maior segredo de todos os tempos: o ser humano.
Anna Freud:
Um breve perfil da filha-paciente-companheira e sucessora de Freud.


Temas da apresentação:

- O inconsciente
- A sexualidade
- Os sonhos
- O superego

sábado, 2 de abril de 2011

"Perversão" - As engrenagens da violência sexual infantojuvenil

Livro: Perversão

Adquira: Livraria Resposta

A pedofilia provoca repulsa e horror generalizados, pois a imagem que cada um tem de si mesmo enquanto criança ou ainda não adulto, enquanto ser desamparado, constitui uma barreira de repugnância para os atos diretamente sexuais com crianças. No que se denomina comumente de pedofilia emerge a imagem de uma criança exposta às violências de algum adulto, como uma “mera vida” (blosess Leben), a vida nua e crua a ser usada a bel-prazer do ato sexual do adulto.

O que fazer, clinica e tecnicamente, com tais indicações importantes, que vão na contramão de nosso horror consciente à pedofilia, mas que mostram (de algum modo) como a pedofilia está sempre emergindo?
A teoria psicanalítica nos mostra que a sexualidade infantil emerge na convergência da repetição familiar e da identificação transgeracional com o agressor (cf. vários ensaios deste livro), mas a família, além de repetição transgeracional de assédio sexual, seria também o locus de sua resolução não traumática. “Ali onde mora o perigo, cresce também a salvação”, disse o poeta Holderlin (1770-1843), o que vale para as questões aqui referidas.